sexta-feira, abril 14, 2006

'EUA testaram intervencionismo na América Latina', diz acadêmica

Angela Sweig
Livro de Sweing discute impactos do antiamericanismo


Muito antes da invasão do Iraque, em 2003, o sentimento antiamericano já hibernava em todo o mundo.


Angela Pimenta
de Nova York





Mas ao contrário do que a história recente leva a crer, nos últimos 150 anos a América Latina – e não a Ásia ou o Oriente Médio – tem sido o alvo mais constante do intervencionismo americano.

Recém-lançado nos Estados Unidos, o livro Friendly Fire – Misadventures Abroad and the Making of Anti-America, (Fogo Amigo – Desventuras no Estrangeiro e a Construção da Anti-América, em tradução livre), da cientista política Julia Sweig, examina as raízes do antiamericanismo, além de discutir seus efeitos na geopolítica contemporânea.

No livro, ainda sem previsão de lançamento no Brasil, Sweig, uma especialista em América Latina do Conselho de Relações Internacionais, revela de que maneira as ex-colônias ibéricas serviriam como uma espécie de laboratório para o exercício do intervencionismo americano. Se por um lado os Estados Unidos se apresentavam como um bastião da democracia e da liberdade, por outro não hesitavam em invadir seus vizinhos e promover ditaduras latino-americanas em nome do anticomunismo. Sweig falou com exclusividade à BBC Brasil.

BBC Brasil - Por que a América Latina, e não a Ásia ou o Oriente Médio, viria a se tornar o laboratório para o intervencionismo americano no século XX?

Julia Sweig – Porque historicamente a América Latina tem sido o alvo de um interesse especial dos Estados Unidos. Este tem sido o padrão do intervencionismo americano desde o lançamento da Doutrina Monroe (em 1826), quando os Estados Unidos claramente traçaram uma linha em torno da América Latina, dizendo: “Isso aqui é nosso! Mantenham distância”. De certa maneira, os Estados Unidos têm uma obsessão maior com a América Latina do que com o Oriente Médio e a Ásia. É uma espécie de “necessidade genética” de controlar os eventos no hemisfério. Esse impulso tem sido expressado de uma maneira mais evidente depois do 11 de setembro. Um bom exemplo disso aconteceu durante a campanha presidencial de 2004, quando o vice-presidente Dick Cheney falava sobre El Salvador. Cheney apontava a intervenção dos Estados Unidos contra a insurgência naquele país nos anos 80 como uma referência positiva, que viria a provar a capacidade dos Estados Unidos de derrotar a insurreição no Iraque. Ainda que na época não se usasse essa expressão, as guerras da América Central eram episódios de “troca de regime”, como aconteceu no Iraque. E os defensores da Guerra do Iraque têm apontado El Salvador como um exemplo positivo, defendendo o direito americano de usar a força para promover a democracia.

BBC Brasil – O antiamericanismo na América Latina é mais enraizado do que nas demais regiões do mundo?

Sweig – Sim. Até o final do século XX, com a exceção do Vietnã, foi a América Latina quem mais sofreu o intervencionismo americano. Muito antes de o fundamentalismo islâmico germinar, os latino-americanos já estavam irados com Washington. Para se ter uma idéia, apenas entre 1900 e 1921, os Estados Unidos intervieram 28 vezes em países latino-americanos, em nome de Deus, da democracia ou da proteção dos cidadãos americanos. E, ao longo do século passado, além de intervirem diretamente, a pretexto de combater o anticomunismo, os Estados Unidos manchariam sua reputação no hemisfério de outras formas. Eles patrocinaram ditaduras e fecharam os olhos para esquadrões da morte e outros abusos contra os direitos humanos em países alinhados com Washington.


BBC Brasil – Por que o intervencionismo americano no Brasil tem sido mais brando do que em outros países latino-americanos como Cuba, Chile ou Guatemala?

Sweig – Suponho que tenha a ver com o tamanho, a distância entre o Brasil e os Estados Unidos e também com a própria insularidade brasileira, uma herança histórica, pelo fato de o Brasil ter pertencido ao Império Português. O Brasil é mesmo uma exceção na região, se comparado à Argentina e a todos os demais países ao norte. Outro fator é o próprio senso de identidade brasileira. Até recentemente o Brasil não tinha uma inclusão global e tampouco hemisférica. Talvez isso tenha servido como uma espécie de escudo para o Brasil.

BBC Brasil – A senhora afirma que por não oferecer ao México um acordo amplo sobre imigração, os Estados Unidos têm desperdiçado uma grande chance de atraí-lo para mais perto de Washington. Será que o projeto de lei de imigração do presidente Bush, em tramitação no Congresso americano, poderia diminuir o antiamericanismo no México?

Sweig – Assim como a França, o México tem um sentimento antiamericano muito enraizado. Essa forma de nacionalismo não é nova. Mas não creio que o primeiro objetivo dos Estados Unidos deva ser a reversão do sentimento antiamericano. Acredito, entretanto, que uma legislação sensível e humana, baseada na realidade da imigração, poderia acalmar o nacionalismo antiamericano presente no México. Isso seria positivo porque, graças à imigração, os Estados Unidos se tornaram mais um “país latino-americano”. E esse fluxo de gente e mão-de-obra não vai parar. O problema é que a xenofobia tem crescido nos Estados Unidos, e é cada dia maior. E para superá-la seria preciso que os políticos estivessem acima da demagogia. Mas eu não vejo isso acontecendo.

Talvez o meu livro dê a impressão de que o sentimento antiamericano seja completamente “made in the USA”. Mas é importante não perder de vista as políticas domésticas, internas, dos países ao redor do mundo. Tome-se o caso do México, por exemplo: Por que os mexicanos vêm para os Estados Unidos? Porque eles não têm emprego em seu país. Até mesmo os brasileiros têm vindo para os Estados Unidos. Os Estados Unidos acabam prejudicando sua própria imagem quando se representam como a solução para todos os problemas do mundo, para os fracassos e desafios específicos de cada país. Isso aumenta o nível de decepção dos outros em relação a nós. E o resultado vai ser mais desilusão, raiva e ressentimento contra os Estados Unidos.

BBC Brasil – De que maneira a intervenção americana no fracassado golpe de Estado contra o presidente venezuelano Hugo Chávez, em 2002, afetou imagem dele como um símbolo de desafio aos Estados Unidos nas Américas?

Sweig – Chávez se beneficiou imensamente da intervenção americana na tentativa de golpe. Antes dele, sua popularidade era terrível nas pesquisas de opinião. Ele tem sabido explorar a imagem de Davi e Golias que o confronto com os Estados Unidos oferece. Ele triunfou não apenas porque os Estados Unidos endossaram o golpe, mas em função do fracasso da oposição venezuelana em tirá-lo do poder. Outro fator importante a impulsionar a popularidade de Chávez é o petróleo. Sem ele, Chávez não seria tão popular.

BBC Brasil – Será que além da política externa americana, o próprio estilo pessoal do presidente George W. Bush não causa mais antiamericanismo?

Sweig – Cada presidente americano torna-se uma espécie de caricatura na imprensa estrangeira. Bush, por exemplo, é o caubói, um convertido ao protestantismo – ele encarna o modelo do conservadorismo americano, dos chamados “Estados vermelhos”, que votam no partido Republicano, em contraste com os “Estados azuis” democratas. Ele também tem a imagem de durão e, apesar de ter diplomas das universidades de Harvard e Yale, ele se gaba de não saber pronunciar as palavras corretamente. Isso funciona bem para sua imagem no ambiente doméstico, mas não no plano internacional. Sua imagem torna-se um manifesto da política externa americana, quando ele diz, por exemplo: “Ou vocês estão conosco, ou contra nós”, ou “eu não preciso (do Protocolo) de Kyoto”. Nesse sentido, ele personifica um país unilateralista, e até mesmo sua linguagem corporal contribui para essa imagem.

BBC Brasil – De que maneira o atual antiamericanismo tem manchado a imagem do chamado “sonho americano” ao redor do mundo?

Sweig – Existe um grande debate a esse respeito. E não creio que haja uma resposta para isso. Pesquisas com consumidores ao redor do mundo prevêem que em função do declínio da imagem americana, a rejeição a produtos americanos vai crescer. Durante o século XX, comprar um maço de cigarros Marlboro ou uma garrafa de Coca-Cola tinha uma espécie de ressonância psicológica, um simbolismo de que se estava comprando um pedaço do sonho americano. E que sonho era esse? Geralmente, no século XX isso significava a noção da meritocracia da classe média, em que o indivíduo poderia prosperar mesmo se tivesse nascido na pobreza. Porque o mérito era a base da sociedade americana. E no século XX, os Estados Unidos estavam avançando, expandindo o sonho, para incluir minorias como as mulheres, negros, deficientes e gays.

Mas hoje, o que é o sonho americano? Em parte ele ainda está de pé, porque as pessoas de todo o mundo continuam querendo vir para cá. Mas nossa sociedade não é mais vista como um modelo que outros povos querem reproduzir, à medida que eles se tornam mais democráticos e constroem suas sociedades. Hoje, em termos de modelo, estamos competindo com a Alemanha, a França e países da Escandinávia, porque existem outras maneiras de se erguerem sociedades democráticas com uma economia de mercado. E isso é parcialmente relacionado ao Iraque e ao presidente Bush, mas também tem a ver com a direção na qual o mundo já estava seguindo, o que não é necessariamente mau.

BBC Brasil – À medida que a China se afirmar como uma potência militar e econômica no século XXI, o antiamericanismo será substituído pelo sentimento antichinês ao redor do planeta?

Sweig – Talvez. Uma das razões pelas quais existe “Anti-América” é que as pessoas estão decepcionadas, sentem-se traídas pelo sonho americano. Mas não acredito que exista algum “sonho chinês” que as pessoas ao redor do planeta queiram abraçar e depois despertar para concluir que ele não era tão maravilhoso assim. Por outro lado, à medida que o poder americano diminui e outras potências ascendem, elas certamente absorverão parte da frustração, das fricções e dos inimigos dos Estados Unidos. Isso vai acontecer com a China, especialmente na Ásia. Até mesmo na América Latina, a China já começa a ser percebida como uma potência, cuja enorme força de trabalho ameaça trabalhadores do México ao Brasil. As pessoas sabem que a China não é uma democracia. E os países que têm trabalhado duro para solidificar suas democracias, vêem a China como uma potência mercantilista antiquada, querendo sugar seus recursos naturais, sem respeito ao meio-ambiente ou aos direitos humanos.

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