sexta-feira, março 10, 2006

Mercosul: a caminho da integração sul-americana

Vários acordos de integração ocorreram na América Latina. Muitos não passaram de tentativas integracionistas frustradas que não foram adiante, na maioria das vezes, pela grande diferença política e econômica entre os países acordados, como ocorreu com a Alalc. Outros persistem sem grande desenvoltura, como o Pacto Andino.

No entanto, o Mercosul vem ganhando corpo e destaque, consolidando-se cada vez mais como via de integração entre os países da América do Sul.

O texto abaixo, de Mônica Arroyo, professora do Departamento de Geografia da Universidad de Buenos Aires, mostra a complementaridade entre globalização e regionalização e faz uma análise da formação do Mercosul no atual contexto da América Latina, em particular, da Argentina e do Brasil.

Mercosul: novo território ou ampliação de velhas tendências?

Duas tendências concomitantes no sistema internacional contemporâneo têm se acentuado na última década: a globalização e a regionalização da economia. Elas se opõem quanto à direção do movimento que em cada uma está implícita. A globalização remete à idéia de um movimento que tem como "campo de ação" todo o planeta, um movimento que opera na escala mundial. A regionalização, por outro lado, mostra uma tendência a atuar em uma área limitada do planeta, em uma escala mais reduzida. Porém, na realidade, essa oposição é só aparente já que essas tendências complementam-se para dar respostas às mudanças estruturais que estão transformando paulatinamente o cenário mundial.

[...]

Algumas particularidades latino-americanas

A formação de um mercado comum no Cone Sul (Mercosul) é uma das iniciativas intra-regionais de caráter minilateral que se têm registrado na América Latina no início da década de 90. [...]

Efetivamente, a crise estrutural que tem afetado secularmente o continente se aprofunda com uma gravidade sem precedentes [...]. Isso se expressa claramente a partir de 1982, quando sucessivamente diferentes países latino-americanos declaram a moratória. A posterior aplicação de políticas de ajuste permite explicar o predomínio da estagnação, recessão e descapitalização que caracteriza a chamada "década perdida".

Esta denominação refere-se basicamente ao fato de que a América Latina está em um período de retardamento de seu processo de industrialização. "O modelo de crescimento com endividamento, após o choque dos juros, implicou, no início da década de 80, programas de estabilização que foram administrados por meio de contenção de demanda interna sem uma definição prévia de política industrial e sem priorizar setores, ou mesmo as áreas sociais, o que acabou por provocar uma desorganização econômica" (Cacciamali, 1991:226). É conveniente lembrar que tais receitas recessivas são tuteladas ou controladas pelo Fundo Monetário Internacional, que desde 1982 monitoriza o pagamento da dívida externa.

"Integração: uma tentativa de incremento comercial"

Diante desse contexto particular para o continente latino-americano e das mudanças estruturais do sistema econômico internacional, procuram-se conformar, como uma das formas de reativação econômica, associações minilaterais que dinamizem o comércio intrazonal.

Salienta-se que esses fatos têm seu correlato no plano político, pois a renovação dos numerosos governos no começo da década, indício da consolidação nos processos de transição democrática que vivem vários países da região, vem acompanhada por um desenho mais pragmático da política externa. Tentam-se transformar os processos de integração já em curso em um instrumento para dinamizar as relações econômicas exteriores.

"Em meio à estagnação, a integração"

Neste contexto situa-se o Mercosul, proposta de integração entre Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai, que surge com a assinatura do Tratado de Assunção em março de 1991. [Veja box.]

Optou-se por uma proposta que implica um importante aprofundamento no processo de integração econômica. Outras modalidades, como uma área de livre-comércio e uma união aduaneira, exigem um grau menos avançado de integração. Limitam-se ao tratamento da questão das barreiras ao comércio (dos membros da comunidade entre si e no seu relacionamento com o resto do mundo). O mercado comum, por sua parte, inclui a livre-mobilidade da mão-de-obra e de capital, o qual exige um importante esforço na coordenação das políticas internas dos países envolvidos. Sem dúvida, trata-se de proposta ambiciosa para cumprir em quatro anos.

Agora, para entender o Mercosul, a análise deve remontar a seu antecedente mais recente, o Programa de Integração e Cooperação Econômica (PICE) entre Argentina e Brasil, que foi assinado em 1986.

Os momentos da integração econômica no Cone Sul

O processo de integração no Cone Sul começa em 1985 com um encontro entre os presidentes Raúl Alfonsín (Argentina) e José Sarney (Brasil) em Foz do Iguaçu. Este fato é significativo já que se situa no processo de reabertura democrática iniciado nos dois países depois de traumáticos regimes militares, nos quais predominava uma relação de mútua desconfiança.

Assim sendo, começa-se a assinar uma série de acordos e protocolos bilaterais visando aprofundar um programa de negociações. Um dos objetivos mais significativos do PICE é promover uma especialização intra-setorial, na qual se prioriza o intercâmbio de bens análogos com certo grau de diferenciação. Isto implica uma divisão do trabalho por produtos mais que por ramos de produção, estimulando uma diversificação das estruturas produtivas e o aproveitamento das economias de escala.

Esta opção é uma tentativa de reverter o esquema predominante no comércio bilateral, que se baseia fundamentalmente na exportação de produtos primários com pouco grau de processamento por parte da Argentina diante das exportações brasileiras de manufaturas. Esquema clássico de especialização intersetorial, que, em uma situação de mercado ampliado, pode até provocar a desaparição de algum setor em um dos parceiros comerciais. Pelo contrário, o comércio intra-ramo promovido pelo PICE busca a criação de vantagens comparativas dinâmicas que incrementem a competitividade de alguns setores. Daí a preferência que se outorga às indústrias de bens de capital, alimentar e automobilística.

[...]

Além de estabelecer mecanismos progressivos de eliminação tarifária e de remoção de barreiras não-tarifárias, propõem-se medidas como a formação de empresas binacionais e a criação de um fundo de investimentos, visando estimular a complementaridade produtiva.

"Do livre-comércio ao mercado comum"

[...]

Como foi indicado [...], o processo de integração aprofunda-se no sentido de aspirar à constituição de um mercado comum e também alcança uma nova dinâmica. Estabelece uma redução tarifária generalizada, linear e automática, a partir de 20% de redução tarifária anual, junto a uma eliminação de barreiras não-tarifárias, que significa uma liberalização comercial de caráter universal (todos os produtos são submetidos automaticamente à redução tarifária), regida por prazos de cumprimento estrito. [...]

Esta decisão de acelerar o processo de formação de um mercado comum com o estabelecimento de calendários extremamente apertados é também uma forma de desconhecer as assimetrias entre os países envolvidos e, em conseqüência, das relações econômicas preexistentes. Dificilmente pode-se atender a essas dificuldades em um ritmo tão peremptório. A propósito, é bom lembrar que na Europa, sem crise de inflação e dívida externa, esse processo levou mais de quatro décadas.

No entender de Araújo (1990), "a decisão de encurtar os prazos do programa foi uma temeridade, posto que nenhum dos dois governos está preparado para enfrentar, nos próximos dois ou três anos, as dificuldades inerentes ao complicado exercício de harmonizar políticas. [...] Em outro de seus trabalhos (1991), acrescenta que "a fim de evitar que o Mercosul se torne mais um exemplo da longa lista de fracassos latino-americanos, seria conveniente, enquanto há tempo, reduzir transitoriamente seu escopo para um tratado de livre-comércio, e estabelecer prazos mais sensatos para a formação do mercado comum".

Um dilema ainda não resolvido

Um processo de integração econômica entre vários países responde, sem dúvida, a uma decisão de tipo político que imprime determinado conteúdo ao projeto. Este último depende principalmente dos processos políticos internos de cada país, da condução de seus governos e da participação dos diferentes segmentos da sociedade civil. Daí que vários autores falam dos possíveis cenários ou opções que o processo de integração pode enfrentar.

A respeito, Halperín (1991) aponta duas opções para os governos do Cone Sul: uma negociação de abertura maciça para o aproveitamento planificado dos mercados; ou uma abertura irrestrita com condições impostas pelas "forças do mercado".

A primeira opção exige uma regulação estatal mediante unificação e harmonização das políticas econômicas, incluindo previsões para os diferentes setores e ramos de produção e uma política externa comum. Pode-se assimilar este caminho ao cenário "industrialista" definido por Chudnosky e Porta (1990), os quais supõem uma liberalização comercial dentro de um projeto global de reestruturação industrial. Para isso, precisa-se de políticas industriais e tecnológicas ativas em cada país, e um esforço deliberado de harmonização das políticas econômicas além do plano cambial.

A segunda opção, ao contrário, implica uma elevada desregulação das atividades econômicas. Seria suficiente, neste caso, compatibilizar os regimes de promoção setorial e fixar algum mecanismo de paridade ou equivalência cambial de caráter permanente. Esta concepção assemelha-se à "comercialista" que apontam Chudnosky e Porta, na qual a coordenação das políticas econômicas centra-se basicamente no tipo de câmbio. A partir daí a reestruturação passa a ser orientada estritamente pelos mecanismos do mercado.

A diferença no grau de intervenção estatal que subjaz a cada uma das opções implica, também, resultados diferenciados. Uma implementação de políticas industriais e tecnológicas ativas, associada a uma liberalização comercial progressiva, permitiria orientar o processo de industrialização em face de um aumento de sua competitividade a partir de economias de escala e especialização. Ao contrário, uma abertura rápida e uma desregulação da economia podem conduzir a uma reconversão com um alto custo social e a um aprofundamento do esquema de especialização intersetorial.

Mercosul: velhas tendências

Neste sentido, deseja-se destacar que a possibilidade de atingir níveis crescentes de competitividade não depende exclusivamente dos esforços individuais dos agentes econômicos. Cada vez mais na experiência internacional torna-se central a idéia de "competitividade sistêmica" como base sólida para o desenvolvimento econômico. Segundo Kosakoff (1991), esta noção "substitui e, por sua vez, se superpõe aos esforços individuais, que, embora sejam condição necessária para atingir esse objetivo, devem estar acompanhados, necessaria-mente, por inumeráveis aspectos que conformam o entorno das firmas (desde a infra-estrutura física, o aparato científico-tecnológico, a rede de provedores e subcontratistas, os sistemas de distribuição e comercialização até os valores culturais, as instituições, o marco jurídico, etc.)".

Sem dúvida, as condições que conformam tal entorno dependem em grande medida da presença ativa do Estado, o único que pode facilitar a participação de todos os agentes econômicos no processo, fundamentalmente das pequenas e médias empresas.

Conforme observado, pode-se concluir que o enfoque do avanço gradual por setores, que predominou no primeiro momento do processo de integração entre Argentina e Brasil, corresponderia basicamente à via de tipo "industrialista". Pelo contrário, a inflexão produzida a partir de 1990 mostra que o novo esquema parece estar mais próximo da opção "comercialista", na qual o Estado aparece subordinado à lógica do mercado.

A partir desse suposto, pode-se inferir que em um cenário "comercialista" predominam as velhas tendências, isto é, um esquema de intercâmbio no qual só se beneficiam os setores mais concentrados, os que já detêm um importante grau de controle da economia.

ARROYO, Mônica. Mercosul: novo território ou ampliação de velhas tendências? In: SCARLATO, Francisco C.; SANTOS, Milton et al. (org.).
O novo mapa do mundo: globalização e espaço latino-americano. 4. ed. São Paulo: Hucitec/Annamblume, 2002. p. 123-129.

"Mercosul: criação do Tratado de Assunção"

De acordo com o Artigo no 1 desse Tratado, os Estados-parte decidem constituir um mercado comum, que deverá estar estabelecido a 31 de dezembro de 1994 e que implica as seguintes metas:
a) livre-circulação de bens, serviços e fatores produtivos entre os países;
b) o estabelecimento de uma política comercial comum em relação a terceiros países;
c) a coordenação das políticas macroeconômicas e setoriais entre os Estados-membros; e
d) o compromisso de harmonizar as legislações nacionais nas áreas pertinentes.

ARROYO, Mônica. Mercosul: novo território ou ampliação de velhas tendências?
In: SCARLATO, Francisco C.; SANTOS, Milton et al. (org.). O novo mapa do mundo: globalização e espaço latino-americano. 4. ed. São Paulo: Hucitec/Annamblume, 2002. p. 125.

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