quinta-feira, maio 01, 2008

As estratégias política e ideológica dos EUA

Em dois capítulos de seu livro “Quinhentos anos de periferia”, que publicamos hoje, o secretário-geral do Ministério das Relações Exteriores, embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, mostra como os EUA tentam impor sua hegemonia política e ideológica através da pretensa “missão” de defesa da liberdade
SAMUEL PINHEIRO GUIMARÃES


A grande estratégia política americana pode ser resumida na idéia de manter a hegemonia política americana em âmbito mundial, adquirida com a Segunda Guerra, por meio de um sistema político internacional que garanta a igualdade soberana dos Estados, sem contestação pela força de suas fronteiras, e a autodeterminação para fins de organização política interna.
Essa grande estratégia tinha e tem como objetivos intermediários:
1. Implantar por tratado e preservar uma organização política internacional, de âmbito universal, de duração indefinida e garantir o direito de veto dos Estados Unidos nas decisões dessa organização e a preponderância das decisões do governo americano sobre qualquer decisão internacional.
O desejo de evitar novos conflitos mundiais que pudessem colocar em risco a hegemonia do sistema capitalista-liberal democrático, sob a liderança anglo-saxônica; a inexistência de reivindicações territoriais americanas; sua certeza de que, na qualidade de maior potência econômica, financeira e comercial, a paz garantiria sua influência e hegemonia econômica e política no mundo; a necessidade de combater a tendência isolacionista interna; a consciência que de que sua força militar seria insuficiente para manter, sozinha, a paz conseguida em 1945, inclusive por causa do poderio militar convencional soviético – tudo isso fez Roosevelt ressuscitar o ideal de segurança coletiva, de Wilson.
A implantação, por tratados, de uma organização política internacional, de âmbito universal, de duração indefinida, se tornou o grande objetivo após 1945 e o principal instrumento de “organização” da comunidade “caótica” de Estados e da política exterior americana. A Carta das Nações Unidas – elaborada pelo Departamento de Estados dos Estados Unidos e aceita em sua essência pelas quatro potências patrocinadoras da Conferência de São Francisco, duas delas sem poder econômico, militar ou político e a outra satisfeita com sua aceitação na condição de grande potência e segura de que a nova organização não se poderia voltar contra ela graças ao direito de veto – foi praticamente aceita sem modificações pelos países participantes da conferência, satisfeitos com a garantia do fim do isolacionismo americano e gratos por terem sido salvos do nazismo.
Nessa discussão há dois pontos principais a reter. Primeiro, foram criadas duas classes de Estado: os que detêm o poder de impedir a ação das Nações Unidas e os que não detêm esse poder. Estes últimos são obrigados a cumprir as decisões do Conselho de Segurança, órgão supremo, com poder de exercer a força militar e de obrigar, por meio de sanções, o comportamento dos Estados. Segundo, para a política exterior americana, as Nações Unidas (e qualquer outro organismo internacional) são uma criatura sua e não um organismo que tivesse resultado de decisão soberana, livre e consensual da comunidade internacional, vista como um todo ou regional. Tais organizações são úteis quando convenientes e se tornam descartáveis quando inconvenientes ou quando tomam posições contrárias a seus interesses. Assim, o direito de veto que se auto-atribuíram os Estados Unidos e que decidiram partilhar com um grupo restrito de Estados, assim como a idéia de que as decisões do Estado americano são superiores a qualquer decisão de organismos internacionais e sua disposição de enfraquecer, desrespeitar as normas ou retirar-se desses organismos sempre que estes contrariem os desígnios da política americana são um princípio central da estratégia dos Estados Unidos.

2. Agir para a implantação e permanência de regimes políticos, democráticos e representativos se isso for conveniente, em terceiros países que melhor assegurem a influência e a defesa dos interesses políticos e econômicos americanos.
A internacionalização da economia e da sociedade americana, em termos de investimentos, de acesso a materiais estratégicos, de dependência da sua indústria em relação a insumos estratégicos importados, de mercados para seus bens e capitais, da necessidade de estacionamento de tropas americanas no exterior, de livre acesso de seus navios a águas e portos estrangeiros, de proteção de grande número de homens de negócios americanos “expatriados”, confere importância à existência de governos em terceiros países que melhor assegurem a influência e a proteção dos interesses políticos e econômicos americanos.
A natureza democrática desses regimes é uma circunstância desejável, em especial pela maior transparência dos procedimentos legislativos democráticos, a maior independência do Judiciário e a redução do poder discricionário do Executivo; isso, a contrario sensu, ao não existir nos regimes autoritários, dificulta o exercício de influência americana e pode levar a surpresas, por causa de mudanças súbitas e imprevisíveis de política.
O requisito essencial é a atitude em face dos interesses americanos. Assim, além da longa tolerância, apoio e até promoção de regimes autoritários na América Latina, na África, na Ásia e mesmo na Europa, e apesar da retórica democrática atual, os regimes autoritários e oligárquicos são perfeitamente tolerados e tratados com grande consideração, apesar de serem, em muitos casos, monarquias absolutas ou regimes de aparência democrática e republicana, porém autoritários.

3. Auxiliar os movimentos políticos de oposição a governos que contrariem os interesses econômicos americanos e contestem as suas iniciativas políticas.
A política americana de auxílio a movimentos políticos de oposição a governos que contrariam interesses americanos e contestam suas iniciativas políticas se desenvolveu durante toda a Guerra Fria. De forma discreta e encoberta, em parte pela necessidade de aparentar respeito ao princípio de não-intervenção nos assuntos internos dos Estados, consagrado na Carta das Nações Unidas, essa política se exercia por meio da Central Intelligence Agency (CIA) e de outras agências americanas, ou indiretamente, pela negativa de cooperação com os governos, o que auxiliava a oposição a eles e criava condições favoráveis à sua eventual substituição.
A partir do governo Carter, que gradualmente tornou a política de defesa de direitos humanos uma razão para intervir em assuntos internos de outros países, e em seguida no governo Reagan, os Estados Unidos passaram a apoiar abertamente movimentos, inclusive armados, contrários a governos “inimigos”, como ocorreu na Nicarágua, em Angola e no Afeganistão.
A técnica subversiva de favorecer e apoiar, inclusive com armas e recursos, províncias, minorias étnicas ou tribais e seitas religiosas contra o governo central, democrático ou não, que se oponha a interesses americanos, é uma constante na política americana, anterior a Reagan e Carter, os quais apenas a “escancararam” e “legitimaram”.

A ESTRATÉGIA IDEOLÓGICA

A grande estratégia americana pode ser resumida na idéia de manter a hegemonia ideológica americana adquirida com a vitória na Segunda Guerra Mundial e de promover a aceitação dos modelos americanos políticos, econômicos e sociais como o padrão ideal a ser alcançado por todos os países.
A política exterior americana só pode ser compreendida ao se observar o que a sociedade americana pensa de si e o que o seu governo pensa de si e da sociedade americana.
A sociedade americana considera que seu sistema político é o mais perfeito jamais desenvolvido pelo homem. A prova disso seria sua permanência no tempo e a inexistência de interregnos ditatoriais desde a Constituição de 1787.
A sociedade americana considera que seu sistema econômico conseguiu criar a maior e mais dinâmica economia do mundo, em que existe igualdade de oportunidades, em que as diferenças de renda – quando existem – não são excessivas e na qual as que existem são “naturais”, em que os mercados são livres e competitivos, em que o poder econômico não controla o governo e o Estado.
A sociedade americana acredita que sua política exterior é essencialmente pacífica, que as ações militares que empreende visam ao bem-estar da comunidade internacional e nunca o proveito para os Estados Unidos e que os demais Estados têm uma inata tendência agressiva, expansionista e competitiva.
A sociedade americana considera que é sua missão, como principal Estado, preservar os valores ocidentais – que seriam a liberdade política e religiosa, a democracia e o capitalismo – no mundo e lutar pela sua difusão contra seus inimigos.
Os objetivos intermediários da estratégia ideológica americana podem ser assim descritos – naturalmente de forma sintética.

1. Garantir o livre acesso dos sistemas de divulgação do American way of life a todas as sociedades.
Esse objetivo é buscado com a defesa dos princípios de “liberdade de informação” e a oposição a toda política de proteção à produção cultural, em qualquer país, tais como quotas de exibição em cinema, televisão e vídeo, políticas estatais de subsídio às artes e a seus meios de difusão. A importância que atribuem à questão ideológica aparece na defesa do acesso das agências noticiosas e dos jornalistas americanos a qualquer país e na objeção à criação de agências estatais de notícias. Os Estados Unidos desligaram-se da Unesco quando a instituição decidiu criar uma nova ordem internacional da informação.

2. Promover a divulgação dos ideais americanos por meio de sistemas de treinamento profissionais para prováveis integrantes das futuras elites de terceiros países.
Esse objetivo foi promovido pela United States Information System (Usis) e os programas de bolsas de estudo das universidades, das fundações, do programa Fullbright e outros, em especial a partir da criação da United States Agency for International Development (Usaid). Esse programa, de efeitos em longo prazo, mostra hoje seus resultados em países da periferia. Em diversos deles, as equipes de política econômica – e às vezes os ministros de Estado – tiveram sua formação profissional nos Estados Unidos.

3. Garantir o controle dos secretariados de organismos internacionais multilaterais com capacidade de formulação ideológica “internacionalista”.
Os secretariados de organismos internacionais, pelas características do sistema de distribuição geográfica dos cargos e pela vocação idealista e “internacionalista” de seus integrantes, em especial nas décadas iniciais das Nações Unidas, tenderam a desenvolver idéias e teorias que, levando em consideração as assimetrias do poder econômico e político, foram tomadas como desafiadoras aos interesses americanos. Assim, o controle progressivo desses secretariados, a redução de dotações e a mudança de sua orientação, em especial no caso do setor econômico das Nações Unidas, foi considerado objetivo estratégico importante, razoavelmente alcançado nos casos da Cepal, do BID, da Unctad e da Unido, se alinharam progressivamente com a ideologia econômica “correta” do Banco Mundial, do FMI e da OMC.
4. Apresentar o modelo socialista de organização política, econômica e social como intrinsecamente mau, destruidor dos valores ocidentais.
A estratégia ideológica dos Estados Unidos se beneficiou fortemente da existência do socialismo na União Soviética como sistema competitivo de organização social, política e econômica. A existência desse sistema permitiu àquela estratégia não só atacá-lo como estigmatizar, como inimiga e perigosa, qualquer crítica à política e à sociedade americana.
Tendo desaparecido o conflito Leste-Oeste, a estratégia ideológica americana deixou de se referir ao inimigo soviético e passou a considerar como sua tarefa a defesa da globalização e da democracia no plano mundial, de que são novos inimigos o fundamentalismo islâmico, o narcotráfico e o terrorismo, sempre que dificultem os interesses americanos. A ameaça deixa de ser a agressão soviética (se bem que esta seja mantida em uma espécie de freezer político) para se localizar de forma difusa.

5. Apresentar os Estados Unidos como paladinos da independência dos povos coloniais, da liberdade individual, da democracia, da iniciativa privada e dos valores espirituais do homem, da igualdade e da não-discriminação étnica, social, religiosa e econômica.
Nessa tática, os Estados Unidos se apresentaram por meios de seus aparelhos de propaganda, oficial e privada, como os paladinos da democracia (apesar de seu apoio a diversas ditaduras) contra a ditadura socialista; da independência dos povos coloniais (apesar de seu voto contrário sistemático nas Nações Unidas à independência das colônias portuguesas), da não-discriminação étnica (apesar da legislação racista do Sul e de toda discriminação até hoje existente, de fato, contra minorias em geral); dos valores espirituais do homem (apesar do culto ao consumismo, à riqueza, ao hedonismo); da igualdade social e econômica (basta ver as escolas públicas e o sistema universitário de alta qualidade aos quais as elites têm acesso especial pela riqueza ou pela influência) e religiosa.

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