A imensidão do desastre em curso, o radicalismo das rupturas que pode gerar, muito superiores às causadas pela crise iniciada em 1914, gera reações espontâneas de negação da realidade nas elites dominantes, nos espaços sociais conservadores e para além deles. Mas a realidade da crise está se impondo. Nos centros de decisão econômica, a incerteza vai se transformando em pânico.
Jorge Beinstein
A recessão instalou-se nos Estados Unidos, os subsídios aos alimentos, que cobriam cerca de 26,5 milhões de pessoas em 2006, aumentaram em 2007 para 28 milhões, nível nunca alcançado desde os anos 1960. Recentemente, a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) revisou para baixo suas previsões de crescimento para a economia norte-americana, prevendo uma expansão igual a zero para o primeiro semestre deste ano. De seu lado, o FMI acaba de fazer um prognóstico ainda mais grave, incluindo períodos de crescimento negativo.
Estes organismos vinham bombardeando os meios de comunicação (que por sua vez bombardeavam o planeta) com prognósticos otimistas baseados na suposta força da economia norte-americana; afirmavam que não haveria recessão e que o pior que poderia acontecer seria um baixo crescimento, rapidamente superado por uma nova expansão... Se agora admitem a recessão é porque alguma coisa muito pior está no horizonte.
Sob a aparência de várias crises convergentes abre-se diante dos nossos olhos o final do que deveríamos ver como o primeiro capítulo do declínio do Império norte-americano (aproximadamente 2001-2007) e o começo de um processo turbulento disparado pelo salto qualitativo de tendências negativas que foram se desenvolvendo ao longo de períodos de diversa duração.
De qualquer maneira, as más notícias financeiras, energéticas e militares não parecem aplacar os delírios messiânicos de Washington; pelo contrário, é como se Bush e seus falcões não fossem deixar a Casa Branca dentro de poucos meses. Continuam ameaçando governos que não se submetem aos seus caprichos, insinuam novas guerras e afirmam querer prolongar indefinidamente as ocupações do Iraque e do Afeganistão. Mesmo um ataque devastador contra o Irã ainda é possível. A cada certo tempo emerge uma nova onda de rumores bélicos apontando para o Irã, geralmente originados em declarações ou transcendidos de altos funcionários do governo.
Um ataque contra esse país teria conseqüências imediatas e catastróficas para a economia mundial: o preço do petróleo iria às nuvens, o sistema financeiro global ficaria em uma situação caótica e a recessão imperial se transformaria em uma ultra-recessão encabeçada por um dólar em queda livre. Talvez alguns estrategistas do Pentágono e do círculo de falcões mais radicais estejam imaginando um grande fogo mundial purificador, do qual emergiria vitoriosa a nação escolhida por Deus: os Estados Unidos da América. Trata-se de uma loucura, mas faz parte da configuração psicológica de uma parcela importante da elite dominante, atravessada por uma corrente letal que combina virtualidade, onipotência, desespero e fúria diante de uma realidade cada dia menos dócil.
Nos grandes centros de decisão econômica, atualmente, domina a incerteza, que vai se transformando em pânico; o fantasma do colapso começa a mostrar sua face. Enquanto isso, autoridades econômicas norte-americanas injetam massivamente liquidez no mercado, concedem subsídios fiscais e improvisam caríssimas operações de socorro para as instituições financeiras falidas, tentando suavizar a recessão e sabendo que assim aceleram a inflação e a queda do dólar: sua margem de manobra é muito pequena, a mistura de inflação e recessão torna completamente ineficazes seus instrumentos de intervenção.
A palavra "colapso" foi aparecendo com crescente intensidade desde o final do ano passado em entrevistas e artigos jornalísticos, muitas vezes combinada com outras expressões não menos terríveis, em alguns casos, até adotando sua forma mais popular (desmoronamento, morte, queda catastrófica) e, em outros, sua forma rigorosa, ou seja, como sucessão irreversível de graves deteriorações sistêmicas, como decadência geral.
Paul Craig Roberts (que no passado foi membro do staff diretivo do Departamento do Tesouro dos Estados Unidos e editor do Wall Street Journal) publicou em 20 de março um texto cujo título era “O colapso da potência americana” no qual descreve os traços decisivos do declínio integral dos Estados Unidos (1); em 27 de março, The Economist intitulava “Esperando o Armagedon” um artigo sobre a maré irresistível de falências empresariais norte-americanas. Em 14 de março, The Intelligencer mancheteava: “Especialistas internacionais prognosticam o colapso da economia norte-americana”, no qual recolhia as opiniões, entre outros, de Bernard Connelly, do Banco AIG, e de Martin Wolf, colunista do Financial Times.
Em 3 de abril, Peter Morici, em uma nota publicada em Counterpunch, apontava que “é impossível negar que a economia (norte-americana) entrou em uma recessão cuja profundidade e duração são imprevisíveis” (2). A título de conclusão, em 14 de abril, o Financial Times publicava um artigo de Richard Haass, presidente do Conselho de Relações Exteriores dos Estados Unidos, onde afirmava que “a era unipolar, período sem precedentes de dominação norte-americana, terminou. Durou umas duas décadas, pouco mais do que um instante em termos históricos” (3).
Uma degradação prolongadaPara entender o que está acontecendo, assim como seus possíveis desenvolvimentos futuros, é necessário considerar fenômenos que modelaram o comportamento da sociedade norte-americana durante as últimas três décadas, gerando um processo mais amplo de decadência social.
Em primeiro lugar, a deterioração da cultura produtiva, que foi gradualmente preterida por uma combinação de consumismo e práticas financeiras. A precarização laboral, incentivada a partir da presidência de Reagan, buscava diminuir a pressão salarial melhorando, assim, a rentabilidade capitalista e a competitividade internacional da indústria, mas a longo prazo degradou a coesão laboral e o interesse dos assalariados pelas estruturas de produção. Isso derivou em uma crescente ineficácia dos processos de inovação, que passaram a ser cada vez mais difíceis e caros em comparação com os principais competidores globais (europeus, japoneses, etc.). Um dos resultados disto foi o déficit crônico e ascendente do comércio exterior (2 bilhões de dólares em 1971, 28 bilhões em 1981, 77 bilhões em 1991, 430 bilhões em 2001, 815 bilhões em 2007).
Enquanto isso, a massa de negócios financeiros foi-se expandindo e absorvendo capitais que não encontravam espaços favoráveis no tecido industrial e em outras atividades produtivas. As empresas e o Estado requeriam esses fundos, as primeiras para desenvolverem-se, concentrar-se, competir em um mundo cada vez mais duro, e o segundo para financiar seus gastos militares e civis, que cumpriam um papel muito importante na manutenção da demanda interna.
Vamos lembrar, por exemplo, as despesas descomunais motivadas pela chamada "Iniciativa de Defesa Estratégica" (mais conhecida como "Guerra das Estrelas"), lançada por Reagan em 1983, no momento em que o desemprego atingia 10% da População Economicamente Ativa (a porcentagem mais alta desde o fim da Segunda Guerra Mundial).
Um segundo fenômeno foi a concentração de renda: no início dos anos 1980 o 1% mais rico da população absorvia entre 7% e 8% da Renda Nacional. Vinte anos depois, esse número havia duplicado e em 2007 rondava 20%: o mais alto nível de concentração desde o final dos anos 1920. Por sua vez, o 10 % mas rico passou de absorver um terço da Renda Nacional, a meados dos anos 1950, para os quase 50% de hoje (4).
Contrariamente ao que ensina a “teoria econômica”, essa concentração não derivou em maiores poupanças e investimentos industriais, senão em mais consumo e mais negócios improdutivos, que com ajuda da explosão das tecnologias da informação e da comunicação geraram um universo semi-virtual acima do mundo, quase mágico, onde fantasia e realidade misturam-se caoticamente. Por ele navegaram (e ainda navegam) milhões de norte-americanos, especialmente das classes superiores.
Junto com isso, irrompeu um processo —no início quase imperceptível, mas depois esmagador— de desintegração social, um de cujos aspectos mais notáveis é o aumento da criminalidade e da subcultura da transgressão, abrangendo os mais variados setores da população, acompanhadas pela criminalização de pobres, marginais e minorias étnicas. Atualmente, as prisões norte-americanos são as mais populosas do planeta: por volta de 1980 eram uns 500 mil presos, em 1990 em torno de 1.150.000, em 1997 eram 1.700.000 —aos que havia que acrescentar outros 3.900.000 em liberdade vigiada —, mas no final de 2006 os presos já somavam uns 2.260.000 e os cidadãos em liberdade vigiada eram 5 milhões; no total, mais de 7.200.000 norte-americanos estavam sob custódia judicial (5). Em abril de 2008, um artigo publicado no The New York Times dizia que os Estados Unidos, com menos de 5% da população mundial, têm 25% de todos os presos do planeta: um em cada cem de seus habitantes adultos estão presos; é o número mais alto a nível internacional (6).
Militarização e decadência estatalOutro fenômeno que é preciso considerar é a longa marcha ascendente do Complexo Industrial Militar, área de convergência entre o Estado, a indústria e a ciência que foi se expandindo a partir de meados dos anos 1930, atravessando governos democratas e republicanos, guerras reais ou imaginárias, períodos de calma global ou de alta tensão. Alguns autores, entre eles Chalmers Johnson, consideram que os gastos militares têm sido o centro dinâmico da economia norte-americana, da Segunda Guerra Mundial até as guerras euro-asiáticas da administração Bush-Cheney, passando pela Coréia, Vietnã, Guerra das Estrelas e Kosovo.
Segundo Johnson, que define a estratégia sobredeterminante seguida nas últimas sete décadas como "keynesianismo militar", o gasto bélico real do ano fiscal 2008 vai superar 1,1 trilhões de dólares, o mais alto desde a Segunda Guerra Mundial (7). Estes gastos foram crescendo ao longo do tempo, envolvendo milhares de empresas e milhões de pessoas; de acordo com os cálculos de Rodrigue Tremblay, no ano 2006 o Departamento de Defesa dos Estados Unidos empregava 2.143.000 pessoas, enquanto os contratistas privados do sistema de defesa empregavam 3.600.000 trabalhadores (um total de 5.743.000 postos de trabalho) aos que é preciso acrescentar uns 25 milhões de veteranos de guerra. Em resumo, nos Estados Unidos em torno de 30 milhões de pessoas (número equivalente a 20% da População Economicamente Ativa) recebem de maneira direta e indireta recursos provenientes do gasto público militar (8).
O efeito multiplicador do setor sobre o conjunto da economia possibilitou no passado a prosperidade de um esquema que Scott MacDonald qualifica como "the guns and butter economy", ou seja, uma estrutura em que o consumo de massas e a indústria bélica expandiam-se ao mesmo tempo (9). Mas esse longo ciclo esta chegando ao fim; a magnitude alcançada pelos gastos bélicos transformou-os em um fator decisivo do déficit fiscal, causando inflação e desvalorização internacional do dólar. Além disso, sua hipertrofia deu um enorme peso político às elites estatais (civis e militares) e empresariais, que foram embarcando em um autismo sem contrapesos sociais.
A crescente sofisticação tecnológica, paralelamente ao encarecimento dos sistemas de armas, afastou cada vez mais a ciência militarizada das suas eventuais aplicações civis, afetando negativamente a competitividade industrial. Esta separação ascendente entre a ciência militar (devoradora de fundos e de talentos) e a indústria civil chegou a níveis catastróficos no período terminal da ex-União Soviética. Agora, a história parece estar se repetindo.
A tudo isto soma-se um acontecimento aparentemente inesperado: as guerras do Iraque e do Afeganistão —e, de maneira indireta, o fracasso da ofensiva israelense no Líbano— mostram a ineficácia operativa do super complexo (e super caro) maquinário bélico de última geração, posto em xeque por inimigos que operam de maneira descentralizada e com armas simples e baratas, provocando uma grave crise de percepção (uma catástrofe psicológica) entre os dirigentes do Complexo Industrial Militar dos Estados Unidos e da OTAN (na história das civilizações, esta não é a primeira vez que ocorre um fenômeno deste tipo).
Contudo, a crise da hipertrofia da militarização está estreitamente associada à decadência do Estado, evidenciada pelo recuo da sua capacidade integradora (declínio da segurança social, predominância da cultura elitista em seus centros de decisão, etc.), pela degradação da infra-estrutura e por um déficit fiscal crônico e em aumento, que derivou em uma dívida pública gigantesca. Se olharmos para as últimas quatro décadas, os superávits fiscais constituem uma raridade; desde os anos 1970 os déficits foram crescendo até chegar, ao início dos anos 1990, a níveis muito altos.
Contudo, Clinton despediu-se, no final dessa década, com alguns superávits que, observados a partir de um enfoque de longo prazo, aparecem como fatos efêmeros. Mas desde a chegada de George W. Bush o déficit voltou, atingindo números sem precedentes: 160 bilhões de dólares em 2002, 380 bilhões em 2003, 320 bilhões em 2005...
Estamos agora diante de um estado imperial cheio de dívidas, cujo funcionamento não mais depende apenas do sistema financeiro nacional, mas também (cada vez mais) do financiamento internacional. Teria sido extremamente difícil para a Casa Branca lançar-se em sua aventura militar asiática sem as compras dos seus títulos pela China, Japão, Alemanha e outras fontes externas.
A dependência energéticaA tudo o que já foi dito é necessário acrescentar a dependência petroleira. Por volta de 1960, os Estados Unidos importavam 16% do seu consumo; atualmente, a importação chega a 65%. Durante muito tempo puderam importar a preços baixos, mas agora a situação mudou, a produção mundial de petróleo está se aproximando de seu nível máximo (dentro de muito pouco tempo vai começar a cair) o que, combinado com o enfraquecimento do dólar, esta levando o preço a níveis nunca antes alcançados. E a substituição parcial de combustível de origem fóssil por biocombustíveis (no qual também estão empenhada outras grandes potências industriais) reduz a disponibilidade relativa global de terras agrícolas para a produção de alimentos, o que provoca um aumento geral dos preços dos produtos da agricultura, o que, por sua vez, amplifica o efeito inflacionário.
Os Estados Unidos emergiram como um grande país industrial porque desde o início do século XX foram, também, a primeira potência petroleira internacional. Igual que a Inglaterra durante o século XIX em relação ao carvão, tiveram uma vantagem energética que lhes permitiu desenvolver tecnologias baseadas nesse privilégio e competir com sucesso com o resto do mundo. Mas, em meados dos anos 1950, prestigiosos especialistas norte-americanos, como o geólogo King Hubbert, anunciaram o fim próximo da era de abundância energética nacional. Segundo Hubbert antecipou (em 1956) a partir do início dos anos 1970 a produção petroleira dos Estados Unidos começaria a declinar: foi o que ocorreu.
A incapacidade dos Estados Unidos para reconverter seu sistema energético (tiveram quase quatro décadas para fazer isso) reduzindo ou pondo freio à sua dependência do petróleo pode ser atribuída, em primeiro lugar, à pressão das companhias petroleiras que impuseram a opção da exploração intensiva de recursos externos, periféricos, que foram sobrestimados. Poderia afirmar-se, neste caso, que a dinâmica imperialista forjou uma armadilha energética da qual agora o próprio Império é vítima.
O Estado não desenvolveu estratégias de longo prazo tendentes a economizar energia, algo que provavelmente teria desacelerado (não evitado) a crise energética atual, não só devido às pressões do lobby petroleiro, mas também porque suas cúpulas políticas (democratas e republicanas) foram mergulhando na cultura de curto prazo correspondente à era da hegemonia financeira, subordinando-se completamente aos interesses imediatos dos grupos econômicos dominantes.
Mas também deveríamos refletir sobre os limites do sistema tecnológico ocidental-moderno, que os norte-americanos exacerbaram ao extremo. A mesma coisa ocorreu em torno de objetos técnicos decisivos da cultura individualista (por exemplo, o automóvel) que definem o estilo de vida dominante e com os procedimentos produtivos baseados na exploração intensiva de recursos naturais não renováveis ou na destruição dos ciclos de reprodução dos recursos renováveis. Graças a essa lógica destrutiva, o capitalismo industrial pôde, na Europa, a partir do final do século XVIII, independizar-se dos ritmos naturais, submetendo brutalmente a natureza e acelerando sua expansão.
Isso aparecia aos admiradores do progresso dos séculos XIX e XX como a grande proeza da civilização burguesa. Uma visão mais ampla permite, agora, perceber que se tratava do desdobramento de uma de suas irracionalidades fundamentais, que os Estados Unidos, o capitalismo mais bem-sucedido da história, levou ao mais alto nível jamais alcançado.
Desequilíbrios, dívidas, queda do dólarA perda de dinamismo do sistema produtivo foi compensada pela expansão do consumo privado (concentrado nas classes altas), pelos gastos militares e pela proliferação de atividades parasitárias lideradas pelo sistema financeiro, provocando crescentes desequilíbrios fiscais e no comércio exterior e uma acumulação incessante de dívidas públicas e privadas, internas e externas.
A dívida pública norte-americana passou de 390 bilhões de dólares em 1970 para 930 bilhões em 1980, 3,2 trilhões em 1990, 5,6 trilhões em 2000 para chegar aos 9,5 trilhões em abril de 2008; por sua vez, a dívida total dos norte-americanos (pública mais privada) rondava, na última data mencionada, os 53 trilhões de dólares (aproximadamente o equivalente ao Produto Bruto Mundial) dessa quantia, 20% (uns 10 trilhões de dólares) constituem dívida externa. Apenas durante 2007, a dívida total aumentou em torno de 4,3 trilhões de dólares (equivalente a 30% do Produto Interno Bruto norte-americano) (10).
O processo foi coroado por uma sucessão de bolhas especulativas que marcaram, a partir dos anos 1990, um sistema que consumia muito além das suas possibilidades produtivas.
A partir dos anos 1970-1980 é possível observar o crescimento paralelo de tendências perversas, como os déficits comercial, fiscal e energético, os gastos militares, o número de presos e as dívidas públicas e privadas. Todas essas curvas ascendentes aparecem atravessadas por algumas tendências descendentes; por exemplo, a redução da taxa de poupança pessoal e a queda do valor internacional do dólar (que se acelerou nesta década), expressão do declínio da supremacia imperial.
A articulação destes fenômenos permite-nos delinear uma totalidade social decadente à qual se incorporam (convergem) uma grande diversidade de fatos de diversa magnitude (culturais, tecnológicos, sociais, políticos, militares, etc.).
Esta visão de longo prazo coloca a era dos falcões presidida por George. W. Bush como uma espécie de “salto qualitativo” de um processo com várias décadas de desenvolvimento e não como um fato-excepcional ou um desvio-negativo. Estaríamos diante da fase mais recente da degradação do capitalismo estatista-keynesiano, iniciada nos anos 1970, pontapé inicial da crise geral do sistema. A experiência histórica ensina que essas arrancadas rumo ao inferno quase sempre estréiam no meio de euforias triunfalistas, nas quais por trás de cada sinal de vitória está oculta uma constatação de desastre. A louca corrida militar sobre Europa e Ásia estava (ainda está) no centro do discurso sobre o suposto combate vitorioso contra um inimigo (terrorista) global imaginário, que afundou no pântano as forças armadas imperiais, das expansões desenfreadas da bolha imobiliária e das dívidas que estavam ocultas pelos números de aumento do Produto Interno Bruto e a sensação (midiática) de prosperidade.
O centro do mundoOs Estados Unidos constituem hoje o centro do mundo (do capitalismo global). O seu declínio não é apenas o da primeira potência, mas o do espaço essencial da interpenetração produtiva, comercial e financeira em escala planetária, que foi acelerando nas três últimas décadas até formar uma trama muito densa, da qual nenhuma economia capitalista desenvolvida ou subdesenvolvida pode escapar (sair dessa densa rede significa romper com a lógica, com o funcionamento concreto do capitalismo composto por classes dominantes locais altamente transnacionalizadas).
Durante esta década, a expansão econômica na Europa, China e outros países subdesenvolvidos e o modesto (efêmero) fim do estancamento japonês costumavam ser mostrados como o restabelecimento de capitalismos maduros e a ascensão de jovens capitalismos periféricos, quando, na verdade, tratou-se de prosperidades estreitamente relacionadas com a expansão consumista-financeira norte-americana.
Os Estados Unidos representam 25% do Produto Bruto Mundial e esse país é o primeiro importador global: em 2007 comprou bens e serviços por 2,3 trilhões de dólares, é o principal cliente da China, Índia, Japão e Inglaterra, e é o primeiro mercado extra-europeu da Alemanha. Mas ,é sobretudo, no plano financeiro, área hegemônica do sistema internacional, onde destaca sua primazia. Por exemplo, a rede dos negócios com produtos financeiros derivados (mais de 600 trilhões de dólares registrados pelo Banco da Basiléia, ou seja, umas 12 vezes o Produto Bruto Mundial) articula-se a partir da estrutura financeira norte-americana, as grandes bolhas especulativas imperiais irradiam para o resto do mundo de maneira direta ou gerando bolhas paralelas, como foi possível comprovar com a experiência recente da especulação imobiliária nos Estados Unidos e seus clones diretos na Espanha, Inglaterra, Irlanda ou Austrália e indiretos, como a superbolha bursátil chinesa.
Se observarmos o comportamento econômico das grandes potências vamos comprovar em cada caso como suas esferas de negócios superam sempre os limites dos respectivos mercados nacionais e, inclusive, regionais, cuja dimensão real é insuficiente do ponto de vista do volume e da articulação internacional das suas atividades. A União Européia está solidamente atada aos Estados Unidos a nível comercial, industrial e, principalmente, financeiro; o Japão acrescenta a isso sua histórica dependência das compras norte-americanas; por sua vez, a China desenvolveu sua economia no último quarto de século sobre a base de suas exportações industriais para os Estados Unidos e países como Japão, Coréia do Sul e outros, fortemente dependentes do Império.
Finalmente, o renascimento russo gira em torno de suas exportações energéticas (principalmente dirigidas para a Europa), sua elite econômica foi estruturando-se desde o fim da URSS multiplicando suas operações em escala transnacional, especialmente seus vínculos financeiros com a Europa Ocidental e os Estados Unidos. Não se trata de simples laços diretos com o Império, mas da reprodução ampliada e acelerada de uma complexa rede global de negócios, mercados interdependentes, associações financeiras, inovações tecnológicas, etc., que integra o conjunto das burguesias dominantes do planeta. O mundo financeiro hipertrofiado é seu espaço de circulação natural e seu motor geográfico são os Estados Unidos, cuja decadência não pode ser dissociada do fenômeno mais amplo da chamada globalização, ou seja, a financeirização da economia mundial.
Poderíamos visualizar o Império como sujeito central do processo, seu grande beneficiário e manipulador e, ao mesmo tempo, como seu objeto, produto de uma corrente que o levou até o mais alto nível de riqueza e degradação. Graças à globalização, os Estados Unidos puderam consumir em excesso, pagando ao resto do mundo com seus dólares desvalorizados e impondo seu entesouramento (na forma de reservas) e seus títulos públicos, que financiaram seus déficits fiscais. Contudo, foi também graças ao parasitismo norte-americano que europeus, chineses, japoneses, etc., puderam colocar no mercado imperial uma porção significativa das suas exportações de mercadorias e de excedentes de capitais.
Nesse sentido, o parasitismo financeiro, produto da crise de sobreprodução crônica, é, ao mesmo tempo, norte-americano e universal; a outra cara do consumismo imperial é a reprodução de capitalismos centrais e periféricos que precisam ultrapassar seus mercados locais para fazer crescer seus benefícios. Isso é evidente nos casos da Europa Ocidental e do Japão, mas também no da China, que exporta graças aos seus baixos salários (comprimindo seu mercado interno).
O que está afundando agora não é a nave principal da frota (se assim fosse, numerosas embarcações poderiam salvar-se); há somente uma nave e é seu setor decisivo que está fazendo água.
Horizontes turbulentos e ilusões conservadorasDevemos colocar em seu contexto histórico as atuais intervenções dos Estados dos países centrais destinadas a contrabalançar a crise. Nos últimos meses, proliferaram ilusões conservadoras referentes ao possível descolamento de várias economias industriais e subdesenvolvidas da recessão imperial, mas os fatos vão derrubando essas esperanças. Junto com elas apareceu a fantasia do renascimento do intervencionismo keynesiano: segundo essa hipótese, o neoliberalismo (entendido como simples desestatização da economia) seria um fenômeno reversível e novamente, como há um século, o Estado salvaria o capitalismo.
Na verdade, nas últimas quatro décadas ocorreu nos países centrais um fenômeno duplo: por um lado, a degradação geral dos Estados que, mantendo seu tamanho com relação a cada economia nacional, ficaram submetidos aos grupos financeiros, perderam legitimidade social. Por outro lado, foram progressivamente ultrapassados pelo sistema econômico mundial, não só pela sua rede financeira, mas também por operações industriais e comerciais que burlavam os controles (cada vez mais frouxos) das instituições nacionais e regionais.
Nos Estados Unidos, esse processo avançou mais do que em nenhum outro país desenvolvido, nunca foi abandonado o histórico keynesianismo militar: pelo contrário, o Complexo Militar-Industrial hipertrofiou-se, articulando-se com um conjunto de negócios mafiosos, financeiros, energéticos, etc., que se transformou no centro dominante do sistema de poder, apropriando-se grosseiramente do aparato estatal até transformá-lo em uma estrutura decadente.
Nos países centrais, o estado intervencionista (de raiz keynesiana) não precisa retornar, porque nunca foi embora. Ao longo das últimas décadas, obediente às necessidades das áreas mais avançadas do capitalismo, foi modificando suas estratégias, reforçando a concentração de renda e os desenvolvimentos parasitários, modificando sua ideologia, seu discurso (ontem integrador, social, produtivista-industrial; hoje elitista, neoliberal e virtualista-financeiro).
E no mundo subdesenvolvido, onde o estatismo regrediu até ser triturado, em muitos casos, pela onda depredadora imperialista, a desestatização foi sua forma concreta de submissão à dinâmica do capitalismo global. Lá, o retorno ao Estado interventor-desenvolvimentista de outras épocas é uma viajem no tempo fisicamente impossível: as burguesias dominantes locais, seus negócios decisivos, estão completamente transnacionalizados ou sob a tutela direta de empresas transnacionais.
Agora, em plena crise, ficam a descoberto os dois problemas sem solução aos olhos do Estado desenvolvido (imperialista): sua degeneração estrutural e sua insuficiência, sua impotência perante um mundo capitalista grande e complexo demais. É o que aponta Richard Haas no artigo citado acima, embora sem dizer que não se trata de uma reconversão positiva sobredeterminante do capitalismo internacional o que está encurralando o Estado norte-americano e os outros estados centrais, mas um fenômeno mundial negativo que de maneira rigorosa deveríamos definir como decadência global (econômica-institucional-política-militar-tecnológica).
É por isso que o paralelo que agora está na moda em certos círculos de especialistas entre a implosão soviética e a provável futura implosão dos Estados Unidos é totalmente insuficiente, porque existe, entre outras coisas, uma diferença de magnitude decisiva, o hiper-gigantismo do Império faz com que seu naufrágio tenha um poder de arrastamento sem precedentes na história humana. Mas também porque os Estados Unidos não constituem “um mundo à parte” (marginalizado), mas são o centro da cultura universal (o capitalismo), a etapa mais recente de uma longa história mundial ao redor do Ocidente.
A imensidão do desastre em curso, o extremo radicalismo das rupturas que pode vir a gerar, muito superiores às causadas pela crise iniciada em 1914 (que provocou o nascimento de um longo ciclo de tentativas de superação do capitalismo e, também, do fascismo, tentativa de recomposição bárbara do sistema burguês) gera reações espontâneas de negação da realidade nas elites dominantes, nos espaços sociais conservadores e para além deles. Mas a realidade da crise está se impondo. Todo o edifício de idéias, de certezas de diversos matizes, construído ao longo de mais de dois séculos de capitalismo industrial, está começando a apresentar rachaduras.
* Economista argentino, professor na Universidade de Buenos Aires. É autor, entre outros livros, de "Capitalismo senil, a grande crise da economia global".
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Notas
(1), Paul Craig Roberts, The collapse of American power, Online Journal, 20-03-2008.
(2), Peter Morice, Bush Administration Dithers While Rome Burns. The Deepening recesion, Counterpunch, April 3, 2008.
(3), Richard Haass, What follows American dominion?, Financial Times, April 16, 2008.
(4), Center on Budget and Policy Priorities.
(5), U.S. Department of Justice - Bureau of Justice Statistics.
(6), Adam Liptak, American Exception. Inmate Count in U.S. Dwarfs Other Nations, The New York Times, April 23, 2008
(7), Chalmers Johnson, Going bankrupt: The US's greatest threat, Asia Times, 24 Jan 2008.
(8), Rodrigue Tremblay, The Five Pillars of the U.S. Military-Industrial Complex, September 25, 2006, http://www.thenewamericanempire.com/tremblay=1038.htm.
(9), Scott B. MacDonald, End of the guns and butter economy, Asia Times, October 31, 2007.
(10), Grandfader Economic Report (http://mwhodges.home.att.net/nat-debt).
Tradução: Naila Freitas / Verso Tradutores
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